quarta-feira, 25 de junho de 2014

Voltando aos 4 As de Tim Ingold: algumas notas


Voltando aos 4 As de Tim Ingold: algumas notas

“Foi na minha mudança de Manchester para Aberdeen [1999] que aos três As de arte, arquitetura e antropologia se juntou o quarto, arqueologia. Isto refletia em parte os meus próprios interesses, que durante muito tempo estiveram na fronteira entre arqueologia e antropologia. Mas eu estava também convencido de que nenhuma discussão da relação entre arte, arquitetura e antropologia podia estar completa se a arqueologia não fosse também incluída. Com os seus temas afins de tempo e paisagem (Ingold 1990) e a sua preocupação mútua com as formas materiais e simbólicas da vida humana, a antropologia e a arqueologia tinham desde há muito sido vistas como disciplinas irmãs, mesmo se não o foram sempre em termos explícitos. Acima de tudo há uma afinidade óbvia entre a arqueologia e as histórias quer da arte quer da arquitetura, nos seus interesses comuns pelos artefactos e edifícios antigos. Num certo sentido, suponho eu, os arquitetos e arqueólogos podiam ser encarados como iguais nos seus procedimentos, embora opostos na questão temporal: afinal o mesmo utensílio – o colherim – que o construtor usa para fabricar as formas do futuro é usado pelo arqueólogo, na escavação de um sítio, para revelar as formas do passado. Se um começa com desenhos daquilo que é preciso erguer, o outro termina com plantas do que foi exumado. (...)
Contudo, se a arqueologia se junta à antropologia não como uma ciência positiva mas como uma arte do inquérito [conceito específico do autor, explicitado no conjunto do texto], e se de forma semelhante é para se unir à arte e arquitetura concebidas como disciplinas em vez de compêndios de objetos para uso histórico [é o que faz a história da arte] , então os termos da ligação mútua têm de ser renegociados, em dois aspetos. Primeiro, assim como fomos levados a distinguir a antropologia da etnografia, também, de igual modo, a arqueologia tem de ser distinguida do tipo de pré- ou proto-historiografia que tem como seu objetivo chegar a reconstruções plausíveis da vida quotidiana no passado. Embora os prós e contras do uso de analogias etnográficas para preencher os buracos de tais reconstruções tenham sido extensivamente debatidos, este ponto – crucial para a relação entre etnografia e pré-história – não tem consequências particulares na relação entre antropologia e arqueologia. Segundo, temos de reconhecer que a prática nuclear da arqueologia que é a escavação, entendida no sentido mais vasto como um engajamento com os materiais imersos na terra que contêm traços da atividade humana passada, não pode já ser reduzida a uma atividade de recolha de dados tal como o não pode a prática correspondente da observação participante em antropologia. Tal como a observação participante, a escavação é um meio de conhecer a partir de dentro: uma correspondência entre atenção consciente e materiais ativos, estimulantes conduzida por mãos hábeis “na ponta do colherim”. É a partir desta correspondência, e não da análise de “dados” incluídos em molduras “teóricas”, que o conhecimento arqueológico cresce. Na prática da escavação, como Matt Edgeworth escreveu recentemente, os arqueólogos são obrigados a seguir o corte – “ver onde ele vai, e em que direção nos leva” – não de forma passiva mas ativamente como caçadores atrás da sua presa, sempre alerta e capazes de responder a dicas visuais e tácteis num ambiente intrinsecamente variável (Edgeworth 2012, p. 78; v. Ingold 2011). Com efeito, o corte é uma linha de correspondência.” [conceito de Ingold, explicitado por ele no mesmo texto, p. 7].
Tim Ingold, “Making. Anthropology, Archaeology, art and Architecture”, London, Routledge, 2013, pp. 10 e 11).
Ingold designa “arte de inquérito” algo que caracteriza também a atividade do artesão, ou seja, “(...) permitir ao conhecimento crescer a partir do cadinho dos nossos engajamentos [envolvimentos] práticos e de observação com os seres e as coisas à nossa volta.” (ib., p. 6). E “correspondência” como algo de oposto à descrição do mundo, ou sua representação, mas antes como uma atitude de abertura “àquilo que está a acontecer ali para que nós, por nossa vez, possamos responder-lhe.” (ib., p. 7).
O objetivo do autor é extremamente ambicioso: trata-se não de erguer uma qualquer obra inteligente, mas  de tentar construir uma inteiramente nova configuração dos saberes, uma filosofia completamente diferente da que em geral preside à organização da nossa forma de (vi)ver o mundo, as disciplinas e a sua “transmissão”.
Note-se que o autor procura sempre, em filigrana, diluir os seres humanos no conjunto dos outros seres vivos (a especificidade humana existe, mas como um ser ou organismo entre outros; as questões “existenciais” ou subjetivas estão reduzidas a um mínimo; mesmo as diferenças sociais ou os conflitos são pouco acentuados, em geral, na obra de um autor que tem uma radicação marxista, entre outras. Ingold tenazmente evita, ao seu modo, cair nas armadilhas das dicotomias formativas da nossa cultura, como humano-não humano, natureza-cultura, matéria-espírito, etc.). E, por outro lado, complementarmente, a realidade exterior aos indivíduos aparece normalmente dada como “mundo”, ou seja, da forma mais abrangente e inclusiva possível.
Havendo esta aparente negação do inconsciente, da pulsão, do desejo, as formas de atividade “científica” e “artística” tornam-se disciplinas (modalidades de “inquérito”, no senti acima explicitado) que as pessoas prosseguem como formas de viver o mundo por dentro, como seres imersos no mundo (ao modo explicitado por Heidegger).  Há sim em Ingold um desejo intenso de diluir as fronteiras entre as várias categorias que fomos construindo ao longo de séculos de pensamento e ação, por forma a construir uma filosofia da percepção, da criatividade, da improvisação e da habilidade [“skill”]. De quem? De um ser humano abstrato, afinal, mas que para Ingold é, evidentemente, algo que corresponde a todo o ser humano, na sua “vida real”, ser humano real esse de que o nosso pensamento “categorial” se afastou, confundindo tudo. De modo que a tarefa a que este  pensador brilhante, incansável, obstinado como todo o grande pensador se dedica é a abrir-nos os olhos, retirando as “ramelas conceptuais” que se nos foram acumulando, para ver a realidade de uma forma límpida, atitude a que não falta uma certa poética e uma certa candura. Há em Ingold um frenesim, se bem interpreto, que é a de um homem feliz, na sua relação com os outros, com esse “mundo” abstrato que ele, académico anti-académico, confortavelmente habita, desejoso de se afastar de toda a burocracia que nos assola e perturba a ação de “puramente pensar”.
O entusiasmo com que fala dos seus cursos, perfeitamente compreensível porque são certamente fascinantes (pelo que dele li, e pelas conferências a que assisti) leva-nos porém a perguntar, felizes nós também por haver pessoas assim, que vivem numa espécie de “outro mundo maravilhoso”... e os seus estudantes, que terão ido fazer para a triste vida que a sociedade dos nossos dias lhes reserva?... a Grã-Bretanha estará certamente muito melhor que Portugal, nem se compara, mas também não é o eldorado em que possam medrar muitos “praticantes”, como Ingold, de tarefas em que conhecimento e ação cresçam como uma realidade una e gratificante cada ano que passa. Isto é óptimo que aconteça, mas pelo caminho a ação crítica do professor e investigador pode ficar um tanto atenuada, confinada àquilo que certamente Ingold menos gostaria, mas é bem provável: ser mais um, raro, na grande galeria dos “ilustres”.
Só uma última nota: o autor tem toda a pertinência quando afirma que a arqueologia tem de se distinguir, de se separar, da pré-história ou proto-história que quisesse reconstituir plausivelmente a vida quotidiana do passado. Esse objetivo, que muitos perseguem, é insensato. A arqueologia de que fala Ingold não é essa prática de reconstituição histórica, quero crer, mas antes uma prática de campo que nos envolve diretamente com os materiais (sedimentos, estruturas, objetos, o que seja), que nos leva a pensar “na ponta do colherim”, sem a preocupação de ligar tudo, o mais depressa possível, a um discurso historiográfico. Aqui reside uma das mensagens mais importantes do autor: mais vai levar tempo para que uma grande maioria o entenda.
Ou seja, a arqueologia é uma forma de se “engajar” com a terra, com o terreno, com as estruturas mais ou menos visíveis que o povoam, por forma a desbastá-lo quanto possível das “sujidades” que o tempo nele acumulou, e – necessariamente de uma forma que corresponde sempre a opções de equipa, que vão sendo improvisadas e negociadas ao longo do tempo – tentar perceber como é que esse espaço escolhido para intervenção poderá ter sido organizado no passado, nos variadíssimos passados que nele se imbricam. Trata-se de uma atividade, de uma tarefa, que não visa diretamente reconstituir nada, mas de um exercício de percepção, habilidade, imaginação, antecipação, por forma sobretudo a descartar o que aquilo (aquele sítio, aquela zona intervencionada) não foi, à medida que se avançam hipóteses plausíveis do que pode ter sido. Afastando a ideia dicotómica das funcionalidades versus simbolismos, afastando qualquer categoria óbvia apriorística, sem obsessão interpretativa, mas seguindo aquilo que a “ponta do colherim” – um colherim colectivo, pois se trata de um trabalho de equipa, e de uma performance sobre o terreno que é também um trabalho dos corpos, uma performance comunitária – nos indica. Uma palpitação que é também sentida por seres desejantes, sobre a superfície da terra que é também uma superfície vivida, não apenas um pedaço de terreno. Esse é o fascínio da arqueologia, que nada tem a ver com “mistérios” nem decifração de engmas, mas com a paixão humana de nos envolvermos, de tocarmos o que Lacan genialmente chamou “o Real”.

Vítor Oliveira Jorge
Loures, Junho de 2014

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